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Rascunhos por uma Educação Física histórica e crítica (teoria histórico-cultural)

Gabriel Garcia Borges Cardoso


QUEM É ESSE VIGOTSKI, E O QUE É A TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL?


Lev Semenovich Vigotski (1896-1934), foi um dos mais importantes e destacados pensadores soviéticos que desenvolveu trabalhos científicos em diferentes campos científicos, mas com maior impacto no campo da psicologia, deixando inúmeros textos que analisa e discute resultados de suas pesquisas teóricas, experimentais e clínicas e suas implicações para o desenvolvimento humano (PRESTES; TUNES, 2021). Juntamente com Alexander R. Luria (1902-1977), Alexis N. Leontiev (1903-1979), Daniil B. Elkonin (1904-1984), Leonid V. Zankov (1901-1977), foram responsáveis pela fundamentação da Psicologia/Teoria histórico-cultural, na década de 1920.

A base dos ideários desta teoria é o desenvolvimento do psiquismo humano corresponder à formação dos comportamentos complexos culturalmente instituídos (MARTINS, 2013). Em outras palavras, para Duarte (2013), a psicologia histórico-cultural,

[...] é antes de tudo, uma teoria sobre o movimento dialético entre a atividade humana objetivada nos conteúdos da cultura material e não material e a atividade dos sujeitos que, sendo seres sociais, só podem se desenvolver plenamente pela incorporação, à sua vida, das objetivações historicamente construídas pelo gênero humano (DUARTE, 2013, p. 26).

É importante reforçarmos que essa teoria, assim como todas aquelas que foram e ainda serão apresentadas neste trabalho, são fundamentadas a partir do método materialista histórico-dialético. Assim, precisamos ter em mente que o trabalho, ou seja, a atividade criadora e produtiva que difere os seres humanos dos animais, é categoria fundamental, uma vez que:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza [...] Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, ou seja, um resultado que já existia idealmente (MARX, 2017, p. 255-256).

É a partir do trabalho que torna possível transmitir às gerações aquilo que foi adquirido, pelo próprio trabalho, durante a evolução. “As condições objetivas, asseguradas pelo trabalho como atividade vital, permitiram a transformação de um ser hominizado em um ser humanizado e, portanto, uma mudança na estrutura do psiquismo e nas formações psíquicas superiores” (LINHARES; FACCI, 2021, p. 34).

Neste aspecto, Saviani (2013) apresenta que o trabalho pode ser dividido em dois grandes grupos: trabalho material e trabalho não material. O trabalho material, como o nome diz, é aquele que produz bens materiais. Já o trabalho não material, “trata-se da produção do saber”. A educação está localizada nesse segundo grupo.

Por esse motivo, a frase que talvez mais represente o cerne da pedagogia histórico-crítica, seja: “[...] o trabalho educativo [EDUCAÇÃO] é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular [TRABALHO], a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens [CULTURA]” (SAVIANI, 2013, p. 13, grifo nosso).

Esse entendimento sobre a relação trabalho, educação e cultura é importante pois, a partir de tudo o que foi exposto, podemos afirmar que o trabalho, ou seja, a ação de transformar a natureza intencionalmente, transforma, ao mesmo tempo, a própria natureza humana. É uma ação dialética, impossível de ser fragmentada.

Assim, a principal tese da psicologia histórico-cultural é a de que o desenvolvimento psíquico humano está intimamente ligado ao processo de apropriação cultural. Sendo assim, entende-se que essa aquisição da cultura não pode ser – e não será – igual para todas as pessoas, uma vez que, além da diferença cultural, existe a desigualdade entre os homens.

O indivíduo, somente através da mediação (aprendizagem), é capaz de apropriar da cultura e, consequentemente, desenvolver o psiquismo. Dito isso, é importante ressaltar que a criança, antes da escola, já está envolta no processo de apropriação da cultura através das interações com os adultos. Cabe à escola, então, o papel de realizar a mediação, através do professor, de forma intencional e com a finalidade de proporcionar a máxima possibilidade de desenvolvimento do indivíduo, possibilitando a formação dos conceitos científicos [1].

Relacionando a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, Martins (2011), coloca como princípio geral norteador das duas abordagens, a apropriação da cultura por meio do ensino sistematizado, e a transmissão de conhecimentos clássicos.

Para a psicologia histórico-cultural, essa mediação deve acontecer na zona de desenvolvimento iminente (ou proximal), a fim de torná-la desenvolvimento efetivo (ou real). A zona de desenvolvimento iminente

[...] é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente dos problemas [aquilo que a criança/indivíduo já sabe, e é capaz de realizar sozinha], e o nível de desenvolvimento potencial [ou iminente], determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VIGOTSKI, 2007, p. 97, grifo nosso).

Marsiglia (2011) entende que, para a psicologia histórico-cultural, o natural é transformado pela cultura, em um processo de superação e por incorporação/atribuição, ou seja, o trabalho humano, realizado em sociedade, produz a cultura material e intelectual, assim, as funções psicológicas superiores – exclusivamente humanas - desenvolvem-se superando dialeticamente as funções psicológicas elementares. Para Martins (2013), Vigotski entende que

[...] essa superação não corresponde a um processo evolutivo natural e linear que avança da natureza à cultura, “do simples para o complexo”, no qual cada etapa já está potencialmente incluída na antecedente. Fiel à compreensão dialética do desenvolvimento humano, o autor explicou a referida superação como resultado das contradições internas que se travam entre natureza e cultura, entre o substrato biológico e a existência social (VIGOTSKI apud MARTINS, 2013, p. 288).

Nesse processo de interação ativa com a natureza, constituído pela influência cultural, ocorre a transformação de processos neuropsicológicos naturais em processos complexos (LINHARES; FACCI, 2021). Ou seja, o ser humano ultrapassa o processo simplesmente orgânico e natural, inaugurando as possibilidades sociais do seu desenvolvimento.

Outro ponto fundamental é o entendimento que as crianças não são meros adultos em miniatura. Essa concepção de criança, embora nos dias de hoje seja pouco difundida e defendida, foi a base para a fundamentação pedagógica e a “educação” de crianças por muitos anos.

Quando dizemos que a criança não está madura, nós a comparamos com um adulto e tomamos seu desenvolvimento como parâmetro. Nesse processo, esquecemo-nos das diferenças qualitativas entre o desenvolvimento infantil e o adulto, focando-nos apenas nas diferenças quantitativas e esquecendo-nos que as novas qualidades do adulto não surgiram nele pela maturação, mas pelo permanente processo de apropriação da cultura humana (ASBAHR; NASCIMENTO, 2013, p. 421).

Assim, deve-se levar em consideração a relação indivíduo-sociedade, entendendo o desenvolvimento humano de forma espiralada, compreendendo a existência de saltos qualitativos e rupturas, que poderão alterar a qualidade da relação do indivíduo com o mundo (PASQUALINI, 2013). Isso ocorre pois o natural é transformado pela cultura, em um processo de superação e por incorporação/atribuição, ou seja, o trabalho humano, realizado em sociedade, produz a cultura material e intelectual, assim, as funções psicológicas superiores – exclusivamente humanas - desenvolvem-se superando dialeticamente as funções psicológicas elementares (MARSIGLIA, 2011).

Facci (2004) apresenta que as funções psicológicas superiores – tais como a atenção voluntária, memória, abstração, comportamento intencional – são constituídas pela mediação por intermédio dos signos, sendo a linguagem o signo mais importante. Superando a visão idealista do desenvolvimento psicológico existente até então, a psicologia histórico-cultural entende que cada estágio de desenvolvimento do indivíduo é caracterizado por uma relação determinada, por uma atividade principal, por uma atividade guia. Os principais estágios de desenvolvimento pelos quais os sujeitos passam são, segundo Elkonin (apud FACCI, 2004, p. 67): “comunicação emocional do bebê; atividade objetal manipulatória; jogo de papéis; atividade de estudo; comunicação íntima pessoal; e atividade profissional/estudo”.

É importante ressaltar que essas diferentes atividades guias não são estáticas e fixas a determina faixa etária e etapa de desenvolvimento. São “[...] dominantes em determinados períodos e, no período seguinte, não deixam de existir, mas vão perdendo sua força” (FACCI, 2004, p. 67). Assim como apresenta Facci (2004), essas etapas possuem certa sequência, mas não podem ser entendidas como imutáveis, pois as “[...] condições histórico-sociais concretas exercem influência tanto sobre o conteúdo concreto de um estágio individual do desenvolvimento como sobre o curso total do processo de desenvolvimento psíquico como um todo” (p. 76).

Mas como isso vai incidir na Educação Física escolar? Vasconcelos et al. (2023) apresentam que é necessário compreender a relação dialética existente entre o desenvolvimento do psiquismo com a motricidade, no processo de ensino. Para isso, os autores entendem que para essa discussão – essa relação dialética – faz-se necessário não só compreender, mas que o professor detenha os conhecimentos sobre “[...] a determinação da apropriação da cultura no processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores, da atividade dominante, do papel do movimento no desenvolvimento e da sua relação com a consciência” (VASCONCELOS et al., 2023, p. 3).

Assim como apresenta Vasconcelos et al. (2023), diferente dos animais, os seres humanos possuem suas necessidades sociais e historicamente produzidas. Nesse sentido, a motricidade também será diferente entre animais e seres humanos. Segundo Zaporózhets (apud VASCONCELOS et al., 2023, p. 5), “o ser humano aprende a controlar conscientemente seus movimentos pela apropriação da cultura, de modo a guiá-los e a dirigi-los com sua vontade”, e não mais presos às suas necessidades biológicas.

Sendo assim, precisamos compreender que tanto o desenvolvimento psíquico humano, quanto o desenvolvimento motor, não seguem somente as leis naturais e biológicas, tão pouco podem ser entendidas como um processo linear, progressivo e evolutivo – como uma mangueira e seus frutos (ASBAHR; NASCIMENTO, 2013).

Assim como apresenta Leontiev (2004, p. 285), “[...] cada indivíduo aprende a ser um homem”. Porém, é preciso ter clareza de que esse processo de aprendizagem não é espontâneo e natural. A aprendizagem, a apropriação da cultura, é feita em sociedade, a partir de mediações e relações com o outro.


Notas de rodapé: [1] Segundo Vigotski (apud MARTINS, 2013) os conceitos espontâneos são constituídos na experiência prática cotidiana, enquanto os conceitos científicos são elaborados e objetivados sistematicamente pelo trabalho intelectual da humanidade, além de serem transmitidos por meio de processos educativos.


 

REFERÊNCIAS:


ASBAHR, Flávia da Silva Ferreira; NASCIMENTO, Carolina Picchetti. Criança não é manga, não Amadurece: Conceito de Maturação na Teoria Histórico-Cultural. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 33, n. 2, p. 414-427, 2013.


DUARTE, Newton. Vigotski e a Pedagogia Histórico-Crítica: a questão do desenvolvimento psíquico. Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente, SP, v. 24, n. 1, p. 19-29, jan./abr. 2013.


FACCI, Marilda Gonçalves Dias. A periodização do desenvolvimento psicológico individual na perspectiva de Leontiev, Elkonin e Vigotski. Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 64-81, abril 2004.


LEONTIEV, Alexis. O homem e a cultura. In.: LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2004. p. 277-302


LINHARES, Renata; FACCI, Marilda Gonçalves Dias. O desenvolvimento das funções psíquicas superiores: rompendo com a dicotomia entre o natural e o histórico-cultural. In.: FIRBIDA, Fabiola Gomes Batista; FACCI, Marilda Gonçalves Dias; BARROCO, Sonia Mari Shima (Orgs.). O desenvolvimento das funções psicológicas superiores na psicologia histórico-cultural: contribuições à psicologia e à educação. Uberlândia: Navegando Publicações, 2021.


MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão. Considerações sobre desenvolvimento infantil. In: MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão. A prática pedagógica histórico-crítica: na educação infantil e ensino fundamental. Campinas: Autores Associados, 2011.


MARTINS, Lígia Márcia. Contribuições da psicologia histórico-cultural para a pedagogia histórico-crítica. Revista HISTEDBR On-Line, p.286-300, 2013.


MARTINS, Lígia Márcia. Pedagogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural. In: MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão (org.). Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.


MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. 2.ed. São Paulo, SP: Boitempo, 2017.


PASQUALINI, Juliana Campregher. Periodização do Desenvolvimento Psíquico à luz da Escola de Vigotski: a teoria histórico-cultural do desenvolvimento infantil e suas implicações pedagógicas. In: MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão. Infância e pedagogia histórico-critica. Campinas: Autores Associados, 2013.


PRESTES, Zoia; TUNES, Elizabeth. Prefácio. In.: VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Psicologia, Educação e Desenvolvimento: escritos de L. S. Vigotski. Organização e tradução Zoia Prestes e Elizabeth Tunes. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2021.


SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11.ed.rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.


VASCONCELOS, Carolina de Moura et al. O psiquismo humano e a relação com o desenvolvimento da motricidade: subsídios para a educação infantil. In: KRANZ, Cláudia Rosana; BARRETO, Maria da Apresentação; FACCI, Marilda Gonçalves Dias (org.). Psicologia e educação em diálogo com a teoria histórico-cultural e na defesa da humanização. Curitiba: Appris, 2023.


VIGOTSKI, Lev Semyonovich. A formação social da mente: o desenvolvimento social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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