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Rascunhos por uma Educação Física histórica e crítica (metodologia crítico-superadora)

Gabriel Garcia Borges Cardoso


A EDUCAÇÃO FÍSICA ESTÁ SE APROXIMANDO DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA?


A partir da década de 1980, alguns professores e pesquisadores da Educação Física, bem como de outras áreas e disciplinas escolares, buscam se aproximar da pedagogia histórico-crítica, produzindo pesquisas, e aplicando seus fundamentos teóricos e metodológicos em suas aulas.

Em oposição às formas instrumentalizadas de se pensar a Educação Física escolar – em especial àquela cujo objetivo é o desenvolvimento da aptidão física -, no ano de 1992 surge, no Brasil, uma abordagem pedagógica da Educação Física escolar denominada de crítico-superadora. Essa fundamentação acontece quando um coletivo de autores (Carmem Lúcia Soares, Celi Taffarel, Elizabeth Varjal, Lino Castellani Filho, Micheli Escobar e Valter Bracht), baseados na pedagogia histórico-crítica e na pedagogia libertadora – Dermeval Saviani e Paulo Freire, respectivamente -, publicam o livro “Metodologia do Ensino de Educação Física”, propondo uma nova forma de se estudar e ensinar a Educação Física Escolar.


Figura 1 - (Esquerda) Capa da 1ª edição do livro Metodologia do Ensino de Educação Física, publicado pela Editora Cortez em 1992. (Direita) Capa da 2ª edição do livro Metodologia do Ensino de Educação Física, publicado pela Editora Cortez em 2012.


A metodologia crítico-superadora, apresenta como propósito o resgate histórico, fazendo com que o aluno entenda suas origens e todas as mudanças que ocorreram na história da humanidade até à atualidade.

Na perspectiva da reflexão sobre a cultura corporal, a dinâmica curricular, no âmbito da Educação Física, tem características bem diferenciadas das da tendência anterior [a perspectiva da Educação Física escolar, que tem como objeto de estudo o desenvolvimento da aptidão física do homem]. Busca desenvolver uma reflexão pedagógica sobre o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas (COLETIVO DE AUTORES, 2012, p. 39).

Nesta abordagem, a escolha dos conteúdos será baseada na realidade social e cultural dos alunos, ficando ao professor a “função” de formar seres críticos, transformadores, tornando-os capazes de questionar os interesses de classes. Para isso, os autores apresentam “Alguns princípios curriculares no trato com o conhecimento” que vão fundamentar a metodologia crítico-superadora, sendo eles: a relevância social do conteúdo; a contemporaneidade do conteúdo; a adequação às possibilidades sociocognitivas do aluno; a simultaneidade dos conteúdos enquanto dados da realidade; a espiralidade da incorporação das referências do pensamento; e a provisoriedade do conhecimento (COLETIVO DE AUTORES, 2012).

Nesse contexto, os conteúdos devem ser tratados de forma espiralada e, por último, deve apresentar os processos de mudanças existentes. Além do caráter técnico, é necessário levar em consideração a significação, a implicação, e as consequências pedagógicas, políticas e sociais, de cada conteúdo trabalhado, considerando o erro como uma forma de aprendizagem.

Teixeira e Taffarel (2021) apresentam que a partir da formulação da abordagem metodológica crítico-superadora, houve uma mudança radical do objetivo de ensino da Educação Física escolar:

[...] as crianças continuam a ter aulas de ginástica, esportes, lutas e danças; mas com outras orientações, com outras referências em termos de projeto histórico, de finalidades da escolarização e de formas de tratar o conhecimento no currículo, agora enriquecidas com as contribuições das áreas das ciências humanas, em especial, das que favorecem os/as estudantes a desenvolverem novas reflexões e novas formas de explicar essas atividades que são produto da cultura. Portanto, a apropriação dos conteúdos da cultura corporal, por parte dos/as estudantes da educação infantil até a educação de jovens e adultos, passa pelos nexos e relações entre o desenvolvimento da capacidade teórica, a qual permite exercitar, compreender, explicar, imaginar e criar, com base na organização do ensino dos conteúdos fundamentais que apresentem as atividades em suas múltiplas dimensões para que incidam no desenvolvimento das funções psíquicas superiores e no autocontrole da conduta humana (TEIXEIRA; TAFFAREL, 2021, p. 65).

Para Silva (2013), a obra do Coletivo de Autores, que articula a proposta de Dermeval Saviani com a de Paulo Freire, se constituiu como a primeira aproximação sistematizada em livro da Educação Física com a pedagogia histórico-crítica.

Anos após a publicação do livro “Metodologia do Ensino de Educação Física” (COLETIVO DE AUTORES, 2012), novos professores continuaram pesquisando e publicando obras que tentam aproximar a Educação Física com a pedagogia histórico-crítica. Dentre essas publicações, citamos o livro “Pedagogia Histórico-Crítica e Educação Física”, publicado no ano de 2013, organizado pelos professores Adriano de Paiva Reis, Carla Cristina Carvalho Pereira, Leonardo Docena Pina, e Renata Aparecida Alves Landim.

Esse livro, cujo prefácio foi escrito pela professora Celi Nelza Zulke Taffarel (uma das professoras que compõem o Coletivo de Autores, responsáveis pela fundamentação da metodologia crítico-superadora),

[...] realiza nos dois primeiros artigos uma discussão de caráter mais geral sobre a função/especificidade da escola e da Educação Física no mundo contemporâneo. Os demais artigos abordam possibilidades de desenvolvimento de práticas pedagógicas com temas atuais dentro dos diversos conteúdos da cultura corporal: circo, lutas, ginástica, dança, jogos e esporte (REIS et al., 2013, p. 15).

Na introdução da obra, os autores apresentam que os temas selecionados para compor o livro, buscaram relacionar os conteúdos da cultura corporal à problemas sociais presentes na prática social dos alunos. Essa relação, segundo os autores, tem por objetivo ultrapassar a simples “prática pela prática” e promover uma reflexão crítica sobre o modo como os jogos, as lutas, os esportes, ou seja, como os elementos da cultura corporal se expressam em nosso tempo (REIS et al., 2013).

Silva (2013), em sua dissertação de mestrado intitulada de “A pedagogia histórico-crítica no cenário da Educação Física brasileira”, tem como objetivo investigar “como a Educação Física em sua produção acadêmica tem se apropriado da pedagogia histórico-crítica” (SILVA, 2013, p. 18). Nesse trabalho, o autor analisa algumas produções da Educação Física, vinculadas à quatro periódicos da Educação Física, no período de 1984 a 2012. Em sua pesquisa, o autor apresenta que, dentre as obras analisadas, mesmo aquelas que se colocam na tarefa de apresentar a pedagogia histórico-crítica como fundamentação para a Educação Física, existem inconsistências teóricas quando analisados os fundamentos da abordagem. O autor conclui sua pesquisa apresentando que

[...] a pedagogia histórico-crítica ainda é muito incipiente na produção acadêmica da Educação Física brasileira e quando esta relação é encontrada, na maioria das vezes, ela ainda se dá por meio da proposta didática de João Luiz Gasparin e/ou em aplicações de experiências de ensino através da metodologia crítico-superadora (SILVA, 2013, p. 7).

Silva (2013) apresenta que a soma dos trabalhos encontrados nos quatro periódicos analisados foi de 2156 artigos, onde foram identificados 20 artigos com uma relação indireta e apenas 4 artigos com uma relação direta à pedagogia histórico-crítica.

Andrade e Furtado (2021), tiveram como objetivo compreender melhor essa aproximação entre as produções da Educação Física e a pedagogia histórico-crítica, em publicações realizadas entre 1996 e 2019. Os autores, tendo como um dos pontos de partida o trabalho realizado por Silva (2013), concluem que as produções não são mais incipientes, porém ainda não são suficientes. Desta forma, a partir dessa pesquisa realizada, Andrade e Furtado (2021) perceberam que houve um aumento considerado, principalmente a partir do ano de 2012, no número de publicações que relacionam a Educação Física e a pedagogia histórico-crítica.

Caminhando nesta mesma direção, tendo como referência as pesquisas realizadas por Silva (2013) e Andrade e Furtado (2021), realizamos um trabalho cujo objetivo foi verificar como essa aproximação, entre a educação física e a pedagogia histórico-crítica, está posta no campo específico da educação infantil, em produções publicadas em quatro periódicos brasileiros sobre Educação Física (Revista Brasileira de Ciências do Esporte; Revista Movimento; Revista Pensar a Prática; e Revista Motrivivência), entre os anos de 2012 e 2020.

O primeiro ponto que podemos afirmar ao realizar uma análise quantitativa é que a Educação Física na Educação Infantil precisa avançar no campo das produções acadêmicas. Dos 2670 textos publicados entre 2012 e 2020, 49 textos (1,84%) apresentam relação com a Educação Física para crianças de 0 a 6 anos. Destes, apenas 12 textos (0,45%) citam autores da pedagogia histórico-crítica e/ou da metodologia crítico-superadora da Educação Física, sendo que, após analisados, verificamos que apenas 2 textos (0,07% do total) apresentam relação direta com os pressupostos teóricos e metodológicos da pedagogia histórico-crítica (CARDOSO, 2022).

Percebemos, ao final das análises, que os 12 textos analisados poderiam ser agrupadosem três grandes grupos: publicações que se aproximam com os pressupostos teóricos emetodológicos da Pedagogia da Infância; publicações que se aproximam da pedagogia histórico-crítica; e (o maior de todos os grupos) publicações que apresentam pluralidade teóricae que, por isso, apresentam certas contradições entre as concepções identificadas e analisadas (CARDOSO, 2022, p. 81-82).

POR UMA EDUCAÇÃO FÍSICA HISTÓRICO-CRÍTICA


Diante de tudo o que construímos durante esse texto, temos a consciência de que ao nos colocarmos enquanto defensores de uma metodologia crítica da educação - e da educação física -, precisamos ter a consciência que isso vai além de simplesmente citar autores, e coletivos de autores. Esse lugar requer uma compreensão de que tal defesa vai além das páginas dos planos de aula, dos trabalhos apresentados e dos textos publicados.

Esse lugar é, na realidade, uma concepção de mundo, um modo de vida, no sentido mais amplo, pois, ao realizarmos os estudos e as reflexões que compuseram esse trabalho, traçando as relações entre o método e as teorias pedagógicas e da psicologia, fomos capazes de compreender que seus conceitos e categorias relacionam-se diretamente, e de forma imbricada, ou melhor, se relacionam de forma dialética com concepções de mundo e de ser humano.

Na realidade, ao afirmarmos que nos aproximamos dessa concepção de Educação Física escolar, estamos, ao mesmo tempo, realizando uma aproximação com outras concepções que, de forma dialética, se relacionam de forma inseparável. Para nós, é fundamental a compreensão de que o professor possui papel ativo no processo de ensino e aprendizagem:

[...] proporcionar o desenvolvimento potencial do aluno e aprendizagem dos conhecimentos produzidos pela humanidade, realizando a sistematização e transformação do conteúdo [...] em saber escolar acessível aos alunos (CARDOSO; MACEDO, 2022, p. 8).

Numa visão histórico-crítica da educação, entende-se que o objeto da educação é a relação existente entre, “[...] de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitante, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo” (SAVIANI, 2013, p. 13).

Isso quer dizer que a partir de uma visão crítico-superadora - e histórico-crítica - da Educação Física, o ensino exclusivamente do gesto técnico, cuja principal finalidade seja o treinamento especializado, o desenvolvimento motor e a aptidão física, torna-se insuficiente.

É a partir desta compreensão, de que as categorias da pedagogia histórico-crítico estão dialeticamente relacionadas às concepções de mundo, que compreendemos a existência de elementos universais, ou seja, elementos que podem e devem ser trabalhados em qualquer nível da educação. Neste sentido, independente da faixa etária dos alunos, a escola, a partir de uma fundamentação histórico-crítica, será o local privilegiado para o ensino dos conhecimentos mais desenvolvidos, produzidos e transformados ao longo da história da humanidade; o professor terá o papel de selecionar e transmitir, da forma mais adequada (tendo como base a periodização psíquica da psicologia histórico-cultural), o que há de mais avançado na produção humana; e a Educação Física terá como objetivo apresentar os vários elementos da cultura corporal, produzidos e transformados ao decorrer da história humana.

Assim como nos apresenta Teixeira (2008), de forma mais atual, mas ainda com referencial clássico como base, a cultura corporal é

[...] o conjunto de atividades humanas que surgem, historicamente, a partir de relações sociais de trabalho; se efetivam por ações e operações que buscam satisfazer necessidades humanas de primeira ordem ou a elas relacionadas, e que ao longo do desenvolvimento do gênero humano assumem uma autonomia relativa em relação ao processo de trabalho, pois passam a se orientar por outros significados e sentidos que não estão necessariamente vinculados diretamente ao processo produtivo da vida humana. Buscam, na reprodução social, satisfazer outras necessidades humanas não menos importantes e que concorrem no processo de humanização do ser, em geral são valorizadas em si mesmas.
Elas se caracterizam por envolver ações e operações conscientes orientadas por motivos sociais, sejam eles advindos da competição, da exercitação, do agonismo, da sublimação, do lúdico, do estético, da expressão rítmica, e tantos outros que surgem no curso do processo histórico. Com efeito, os motivos das atividades da Cultura Corporal sofrem as determinações das condições materiais de existência (modo de vida), contudo, nesse processo, sempre haverá um motivo que irá assumir a função de momento predominante, que guiará a atividade numa dada direção. Na sociedade de classes sua socialização é restrita, uma vez que a mesma assume a forma de mercadoria, impondo uma formação limitada a maioria da população que não pode pagar para ter acesso, impedindo assim o pleno desenvolvimento das múltiplas potencialidades do ser social. O ensino escolar destas atividades passa obrigatoriamente pela apropriação dos fundamentos (técnico-objetal, axiológico e normativo/judicativo) destas atividades humanas onde é possível estabelecer uma relação consciente com a Cultura Corporal (TEIXEIRA, 2018, p. 49-50).

Esperamos que este trabalho possa auxiliar os (futuros e atuais) professores de Educação Física a compreenderem as bases metodológicas da pedagogia histórico-crítica e sua luta contra as formas hegemônicas em cada etapa do ensino, como por exemplo a Pedagogia da Infância, na educação infantil; as Pedagogias do aprender a aprender, no ensino fundamental; e o Novo Ensino Médio, no ensino médio.

Compreendemos que, somente a partir de uma visão histórico-crítica, histórico-cultural e crítico-superadora, nas bases do materialismo histórico-dialético, torna-se possível a defesa por uma educação que em qualquer nível escolar (da educação infantil ao nível superior), tenha o papel de formar pessoas críticas, capazes de contribuir para a transformação da sociedade e do mundo.

Não há espaço para a pluralidade teórica, para a imparcialidade política. Assim como escreveu Gramsci: “Quem vive verdadeiramente não pode deixar de ser cidadão e de tomar partido [...] A indiferença é o peso morto da história” (GRAMSCI, 2022).


 

REFERÊNCIAS


ANDRADE, Leonardo Carlos de; FURTADO, Roberto Pereira. Aproximações entre Educação Física e Pedagogia Histórico-Crítica: uma análise da produção bibliográfica de 1996-2019. Revista Movimento, v. 27, e27040, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.22456/1982-8918.112513

CARDOSO, Gabriel Garcia Borges. Pedagogia Histórico-Crítica, Educação Física e Educação Infantil: encontros e desencontros. 2022. 93 p. Monografia (Licenciatura em Educação Física) – Universidade Estadual de Goiás, Goiânia, GO, 2022. Disponível em: https://www.gnuteca.ueg.br/html/file.php?folder=material&file=1655734433_tcc_gabriel.pdf


CARDOSO, Gabriel Garcia Borges; MACEDO, Eliene Nunes. Catira Digital: as danças populares nas aulas de Educação Física em formato remoto. Revista Praxia, Goiânia, v. 4, e2022008, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.31668/praxia.v4i0.13087


COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física. 2.ed.rev. São Paulo, SP: Cortez Editora, 2012.


GRAMSCI, Antonio. Indiferentes. In.: COUTINHO, Carlos Nelson (Org.). O leitor de Gramsci: escritos escolhidos: 1916-1935. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.


REIS, Adriano de Paiva et al. O MMA como “nova” face da luta espetáculo. In.: REIS, Adriano de Paiva et al (Orgs.). Pedagogia histórico-crítica e Educação Física. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013.


SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11.ed.rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.


SILVA, Efrain Maciel e. A pedagogia histórico-crítica no cenário da educação física brasileira. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília, Faculdade de Educação Física, 2013.


TEIXEIRA, David Romão. Educação Física na pré-escola: contribuições da abordagem crítico-superadora. 2018. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.


TEIXEIRA, David Romão; TAFFAREL, Celi Nelza Zulke. Os objetos de ensino e a seleção dos conteúdos escolares: reflexões a partir dos estudos sobre a Educação Física. In.: GALVÃO, Ana Carolina et al. (Orgs.). Pedagogia histórico-crítica: 40 anos de luta por escola e democracia: volume 1. Campinas,SP: Autores Associados, 2021.

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