De forma sucinta, para fins educacionais e acadêmicos, podemos dizer que a Capoeira é uma expressão cultural afro-brasileira, que mistura dança, música, jogo, religiosidade e luta. Luta no sentido de combate corporal, e luta no sentido de resistência.
Apresentar e definir o que é a capoeira, é algo muito difícil e polêmico. A falta de documentação e as diferentes interpretações e teorias nos levam sempre a um lugar incerto. Certo, porém, é que a capoeira surge entre as classes mais baixas, de um Brasil ainda escravocrata, como forma de resistência e de sobrevivência.
Assim como nos apresenta Carvalho (2021), em sua dissertação intitulada de Capoeira e trabalho: as relações entre a capoeira contemporânea na cidade de Goiânia e a organização social do trabalho, a história da capoeira perpassa diferentes períodos do Brasil. A autora continua:
Os desdobramentos daí decorrentes vão nos mostrando as contradições que ela carrega. Muito embora a capoeira apareça como uma prática de resistência escrava, trabalhadora e predominantemente negra, como destacam os estudos anteriormente dispostos, sua forma de continuar existindo “exigiu” de seus praticantes mudanças consideráveis. Tecnicismo, “profissionalismo” e controle a partir da imposição de discursos são alguns exemplos dessas novas exigências (CARVALHO, 2021, p. 39-40).
A partir do período da República, a capoeira figurava entre as práticas ilegais, mediante o Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890), que, em seu capítulo XIII, intitulado de Dos Vadios e Capoeiras, determinava que:
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias. § 1º Pela mesma sentença que condemnar o infractor como vadio, ou vagabundo, será elle obrigado a assignar termo de tomar occupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena. § 2º Os maiores de 14 annos serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, onde poderão ser conservados até á idade de 21 annos. Art. 400. Si o termo for quebrado, o que importará reincidencia, o infractor será recolhido, por um a tres annos, a colonias penaes que se fundarem em ilhas maritimas, ou nas fronteiras do territorio nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os presidios militares existentes. Paragrapho unico. Si o infractor for estrangeiro será deportado. Art. 401. A pena imposta aos infractores, a que se referem os artigos precedentes, ficará extincta, si o condemnado provar superveniente acquisição de renda bastante para sua subsistencia; e suspensa, si apresentar fiador idoneo que por elle se obrigue. Paragrapho unico. A sentença que, a requerimento do fiador, julgar quebrada a fiança, tornará effectiva a condemnação suspensa por virtude della. Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro. Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400. Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes.
Dessa forma, como apresenta Goulart (2019), “[…] ser capoeira, naquela época, era, antes de qualquer coisa, um ato de resistência e contravenção […]”. Para além de interesses políticos, somava-se o preconceito racial, motivando esse embate entre “senhores” e “vadios”.
Durante o período militar, a escola, principal meio de formação, tinha como importância principal a instrução para o campo de trabalho. Através de leis, como por exemplo, a lei n° 5.540 de 28 de novembro de 1968, e a lei n° 5.692 de 11 de agosto de 1971, a escola passa a possibilitar tipos determinados de formação, com isso, a Educação Física na escola também sofre alterações, passando a ter um caráter instrumental, visando o desenvolvimento técnico e físico, utilizando como meio de força ideológica a Esportivização, priorizando a aptidão física e a manutenção da saúde individual, além do rendimento máximo. Nesse período, o incentivo à pratica esportiva foi grande, isso é inegável, entretanto esse incentivo não estava ligado apenas a prática, mas sim a uma forma de controle social. O esporte tornava-se uma ferramenta para força ideológica.
Tendo a Esportivização como uma das principais características da Educação Física no período militar, com a Capoeira não foi diferente. Houve, entre os anos de 1964 e 1985, uma tentativa de esportivizar a Capoeira, através de criações de academias, confederações e campeonatos, no esforço de padronizar e controlar o ensino e os “capoeiras”.
No ano de 1972, a Capoeira é oficialmente reconhecida como desporto pelo Ministério de Educação e Cultura. Esse processo se deu graças à Damionor Ribeiro de Mendonça (1932–2017), o Mestre Mendonça. Mestre Mendonça, juntamente com outros adeptos e praticantes da capoeira, assumiu a responsabilidade de escrever o anteprojeto do Estado da Guanabara, que tinha como principal objetivo, regulamentar a prática da Capoeira - a partir da criação de graduações e padronização de uniformes para a prática da capoeira - , para que a mesma fosse legalizada no Brasil.
Mestre Mendonça criou um sistema de graduação chamado Cordel e a padronização de uniforme para a prática da Capoeira. A graduação contava com 10 estágios, onde cada estágio apresentaria uma cor (ou combinação de cores) diferente. As cores foram baseadas na bandeira do Brasil.
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Em 26 de dezembro de 1972, o anteprojeto foi homologado pelo Conselho Nacional de Desporto (CND-MEC), e o mesmo se tornou o Regulamento Técnico da Capoeira (RTC), que passou a vigorar em 1° de janeiro de 1973. A partir de então, o Departamento de Capoeiragem da Confederação Brasileira de Pugilismo passou a registrar oficialmente os Mestres de Capoeira.
Em 1974, em São Paulo, é criada a primeira federação de Capoeira do Brasil, com o intuito de difundir a capoeira como arte marcial brasileira. Em 1975, é realizado, em São Paulo, o primeiro torneio nacional, construído por um regulamento técnico estabelecendo regras para o mais novo esporte brasileiro, além de uma nomenclatura unificada para os golpes (CARDOSO, 2010).
1° Campeonato Brasileiro de Capoeira organizado pela Federação Paulista de Capoeira (1975). Depoimentos de Mestre Itapoan e Mestre Airton Onça. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lFQLHbF4H5g
Esse processo de Esportivização da capoeira não foi algo que agradasse a todos os capoeiras. Aqueles que eram adeptos, defendiam que, ao se adequarem às normas, a capoeira estaria sendo bem vista e, principalmente, não seriam presos, torturados ou mortos.
Por outro lado, os que eram contra esse processo, na intenção de resistir e manter a origem da capoeira, continuavam a praticar em locais públicos, sem uniforme e/ou graduação. Esses, defensores da Capoeira livre, eram considerados capoeiras sem mestres, e foram perseguidos, torturados, presos e, alguns, mortos.
Leonardo Fernando de Jesus (2015), apresenta que é necessário perceber que o período da Ditadura Militar trouxe alguns benefícios para a Capoeira. Alguns desses benefícios são evidenciados quando contamos os inúmeros grupos e seus milhões de praticantes espalhados pelo mundo afora, assim como campeonatos, torneios, CD’s, livros, filmes e até lei (Lei 10.639/03) que legitima o ensino da cultura afro nas escolas e que a Capoeira faz uso desta para sua legitimação. Por outro lado, existem também pontos que foram desfavoráveis à Capoeira, como o preconceito e as injustiças para aqueles que não se enquadraram às normas militares.
A Capoeira, desde seu surgimento (por volta de 1540), precisou de conquistar seu lugar, de lutar para ser aceita. Não foi diferente no período militar. Mas a luta teve resultado. Hoje, a Capoeira é jogada/vivida em praças, em escolas, em academias. A Capoeira é objeto de estudo em universidades e em cursos de graduação. A Capoeira é a representação singela da cultura brasileira. A Capoeira, como dizia Mestre Pastinha, “é tudo que a boca come”.
Referências:
BESOURO PRETO. 1o Campeonato Brasileiro de Capoeira - Federação Paulista de Capoeira - 1975. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lFQLHbF4H5g
CAMPOS, Helio José Bastos Carneiro de. Uma vida na capoeira regional: os seguidores da escola de Mestre Bimba. Corpo, Movimento e Saúde. Disponível em: http://revistas.unijorge.edu.br/corpomovimentosaude/pdf/artigo2012_1_artigo65_84.pdf.
CARDOSO, Marcel Anghinoni. A prática da capoeira no período da ditadura militar brasileira: uma breve revisão histórica. http://www.efdeportes.com/ Revista Digital, Buenos Aires, Ano 15, Nº 145, Jun. 2010.
CARVALHO, Aryanna Barbosa de. Capoeira e trabalho: as relações entre a capoeira contemporânea na cidade de Goiânia e a organização social do trabalho. 2021. 158 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia , 2021.Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/6bf02464-2c97-499e-aa07-1f9bf4569e89/content
CASTRO JÚNIOR, Luis Vitor. Capoeira Angola: olhares e toques cruzados entre historicidade e ancestralidade. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 25, n. 2, p. 143–158, jan. 2004.
DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Coleção de Leis do Brasil — 1890, Página 2664 Vol. Fasc.X (Publicação Original). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html
DE JESUS, Leonardo Fernando. A Capoeira no período da Ditadura Militar (1964–1985) no contexto de Belo Horizonte — MG: diálogos acerca dos processos de resistência e enquadramento na prática da capoeiragem. Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.
FALCÃO, José Luiz Cirqueira. O jogo da capoeira em jogo. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 2, p. 59–74, jan. 2006.
FERRACINI, Rosemberg; MAIA, Carlos Eduardo S. O espetáculo na praça: a roda de capoeira angola. Espaço e Cultura, UERJ, RJ, n° 22, p.32–42, jan./dez. de 2007.
GOULART, Lucas Machado. Discípulo que aprende, mestre que dá lição. Uberlândia: Assis editora, 2019.
LOPES, Regiane L. Associação Cultural Corrente Libertadora: capoeira e atuação político-cultural em Tempos de Ditadura (1976–1989). X Encontro Regional Nordeste de História Oral, Salvador/BA, 2015.
MACEDO, Ana Paula Rezende. A Capoeira Angola: História, persistências e transformações. História e Perspectivas, Uberlândia (34): 425–461, jan.jun.2006.
RODA DE CAPOEIRA. O Legado de Mestre Mendonça para a Capoeira. Disponível em: http://www.rodadecapoeira.com.br/artigo/O-Legado-de-Mestre-Mendonca-para-a-Capoeira/
SOUSA, André Sarmento de. Capoeira, das senzalas à universidade: a prática educativa da cultura negra na UFPB. II CONEDU Congresso Nacional da Educação.
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