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A Capoeira e sua esportivização

Atualizado: 3 de dez. de 2023

De forma sucinta, para fins educacionais e acadêmicos, podemos dizer que a Capoeira é uma expressão cultural afro-brasileira, que mistura dança, música, jogo, religiosidade e luta. Luta no sentido de combate corporal, e luta no sentido de resistência.


Apresentar e definir o que é a capoeira, é algo muito difícil e polêmico. A falta de documentação e as diferentes interpretações e teorias nos levam sempre a um lugar incerto. Certo, porém, é que a capoeira surge entre as classes mais baixas, de um Brasil ainda escravocrata, como forma de resistência e de sobrevivência.


Assim como nos apresenta Carvalho (2021), em sua dissertação intitulada de Capoeira e trabalho: as relações entre a capoeira contemporânea na cidade de Goiânia e a organização social do trabalho, a história da capoeira perpassa diferentes períodos do Brasil. A autora continua:


Os desdobramentos daí decorrentes vão nos mostrando as contradições que ela carrega. Muito embora a capoeira apareça como uma prática de resistência escrava, trabalhadora e predominantemente negra, como destacam os estudos anteriormente dispostos, sua forma de continuar existindo “exigiu” de seus praticantes mudanças consideráveis. Tecnicismo, “profissionalismo” e controle a partir da imposição de discursos são alguns exemplos dessas novas exigências (CARVALHO, 2021, p. 39-40).

A partir do período da República, a capoeira figurava entre as práticas ilegais, mediante o Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890), que, em seu capítulo XIII, intitulado de Dos Vadios e Capoeiras, determinava que:


Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias. § 1º Pela mesma sentença que condemnar o infractor como vadio, ou vagabundo, será elle obrigado a assignar termo de tomar occupação dentro de 15 dias, contados do cumprimento da pena. § 2º Os maiores de 14 annos serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, onde poderão ser conservados até á idade de 21 annos. Art. 400. Si o termo for quebrado, o que importará reincidencia, o infractor será recolhido, por um a tres annos, a colonias penaes que se fundarem em ilhas maritimas, ou nas fronteiras do territorio nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os presidios militares existentes. Paragrapho unico. Si o infractor for estrangeiro será deportado. Art. 401. A pena imposta aos infractores, a que se referem os artigos precedentes, ficará extincta, si o condemnado provar superveniente acquisição de renda bastante para sua subsistencia; e suspensa, si apresentar fiador idoneo que por elle se obrigue. Paragrapho unico. A sentença que, a requerimento do fiador, julgar quebrada a fiança, tornará effectiva a condemnação suspensa por virtude della. Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro. Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400. Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes.

Dessa forma, como apresenta Goulart (2019), “[…] ser capoeira, naquela época, era, antes de qualquer coisa, um ato de resistência e contravenção […]”. Para além de interesses políticos, somava-se o preconceito racial, motivando esse embate entre “senhores” e “vadios”.


Durante o período militar, a escola, principal meio de formação, tinha como importância principal a instrução para o campo de trabalho. Através de leis, como por exemplo, a lei n° 5.540 de 28 de novembro de 1968, e a lei n° 5.692 de 11 de agosto de 1971, a escola passa a possibilitar tipos determinados de formação, com isso, a Educação Física na escola também sofre alterações, passando a ter um caráter instrumental, visando o desenvolvimento técnico e físico, utilizando como meio de força ideológica a Esportivização, priorizando a aptidão física e a manutenção da saúde individual, além do rendimento máximo. Nesse período, o incentivo à pratica esportiva foi grande, isso é inegável, entretanto esse incentivo não estava ligado apenas a prática, mas sim a uma forma de controle social. O esporte tornava-se uma ferramenta para força ideológica.


Tendo a Esportivização como uma das principais características da Educação Física no período militar, com a Capoeira não foi diferente. Houve, entre os anos de 1964 e 1985, uma tentativa de esportivizar a Capoeira, através de criações de academias, confederações e campeonatos, no esforço de padronizar e controlar o ensino e os “capoeiras”.


No ano de 1972, a Capoeira é oficialmente reconhecida como desporto pelo Ministério de Educação e Cultura. Esse processo se deu graças à Damionor Ribeiro de Mendonça (1932–2017), o Mestre Mendonça. Mestre Mendonça, juntamente com outros adeptos e praticantes da capoeira, assumiu a responsabilidade de escrever o anteprojeto do Estado da Guanabara, que tinha como principal objetivo, regulamentar a prática da Capoeira - a partir da criação de graduações e padronização de uniformes para a prática da capoeira - , para que a mesma fosse legalizada no Brasil.


Mestre Mendonça criou um sistema de graduação chamado Cordel e a padronização de uniforme para a prática da Capoeira. A graduação contava com 10 estágios, onde cada estágio apresentaria uma cor (ou combinação de cores) diferente. As cores foram baseadas na bandeira do Brasil.

Mestre Mendonça criou um sistema de graduação chamado Cordel e a padronização de uniforme para a prática da Capoeira. A graduação contava com 10 estágios, onde cada estágio apresentaria uma cor (ou combinação de cores) diferente. As cores foram baseadas na bandeira do Brasil.

Em 26 de dezembro de 1972, o anteprojeto foi homologado pelo Conselho Nacional de Desporto (CND-MEC), e o mesmo se tornou o Regulamento Técnico da Capoeira (RTC), que passou a vigorar em 1° de janeiro de 1973. A partir de então, o Departamento de Capoeiragem da Confederação Brasileira de Pugilismo passou a registrar oficialmente os Mestres de Capoeira.


Em 1974, em São Paulo, é criada a primeira federação de Capoeira do Brasil, com o intuito de difundir a capoeira como arte marcial brasileira. Em 1975, é realizado, em São Paulo, o primeiro torneio nacional, construído por um regulamento técnico estabelecendo regras para o mais novo esporte brasileiro, além de uma nomenclatura unificada para os golpes (CARDOSO, 2010).


1° Campeonato Brasileiro de Capoeira organizado pela Federação Paulista de Capoeira (1975). Depoimentos de Mestre Itapoan e Mestre Airton Onça. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lFQLHbF4H5g


Esse processo de Esportivização da capoeira não foi algo que agradasse a todos os capoeiras. Aqueles que eram adeptos, defendiam que, ao se adequarem às normas, a capoeira estaria sendo bem vista e, principalmente, não seriam presos, torturados ou mortos.


Por outro lado, os que eram contra esse processo, na intenção de resistir e manter a origem da capoeira, continuavam a praticar em locais públicos, sem uniforme e/ou graduação. Esses, defensores da Capoeira livre, eram considerados capoeiras sem mestres, e foram perseguidos, torturados, presos e, alguns, mortos.


Leonardo Fernando de Jesus (2015), apresenta que é necessário perceber que o período da Ditadura Militar trouxe alguns benefícios para a Capoeira. Alguns desses benefícios são evidenciados quando contamos os inúmeros grupos e seus milhões de praticantes espalhados pelo mundo afora, assim como campeonatos, torneios, CD’s, livros, filmes e até lei (Lei 10.639/03) que legitima o ensino da cultura afro nas escolas e que a Capoeira faz uso desta para sua legitimação. Por outro lado, existem também pontos que foram desfavoráveis à Capoeira, como o preconceito e as injustiças para aqueles que não se enquadraram às normas militares.


A Capoeira, desde seu surgimento (por volta de 1540), precisou de conquistar seu lugar, de lutar para ser aceita. Não foi diferente no período militar. Mas a luta teve resultado. Hoje, a Capoeira é jogada/vivida em praças, em escolas, em academias. A Capoeira é objeto de estudo em universidades e em cursos de graduação. A Capoeira é a representação singela da cultura brasileira. A Capoeira, como dizia Mestre Pastinha, “é tudo que a boca come”.


 

Referências:


BESOURO PRETO. 1o Campeonato Brasileiro de Capoeira - Federação Paulista de Capoeira - 1975. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lFQLHbF4H5g


CAMPOS, Helio José Bastos Carneiro de. Uma vida na capoeira regional: os seguidores da escola de Mestre Bimba. Corpo, Movimento e Saúde. Disponível em: http://revistas.unijorge.edu.br/corpomovimentosaude/pdf/artigo2012_1_artigo65_84.pdf.


CARDOSO, Marcel Anghinoni. A prática da capoeira no período da ditadura militar brasileira: uma breve revisão histórica. http://www.efdeportes.com/ Revista Digital, Buenos Aires, Ano 15, Nº 145, Jun. 2010.


CARVALHO, Aryanna Barbosa de. Capoeira e trabalho: as relações entre a capoeira contemporânea na cidade de Goiânia e a organização social do trabalho. 2021. 158 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia , 2021.Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/6bf02464-2c97-499e-aa07-1f9bf4569e89/content


CASTRO JÚNIOR, Luis Vitor. Capoeira Angola: olhares e toques cruzados entre historicidade e ancestralidade. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 25, n. 2, p. 143–158, jan. 2004.


DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890. Coleção de Leis do Brasil — 1890, Página 2664 Vol. Fasc.X (Publicação Original). Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html


DE JESUS, Leonardo Fernando. A Capoeira no período da Ditadura Militar (1964–1985) no contexto de Belo Horizonte — MG: diálogos acerca dos processos de resistência e enquadramento na prática da capoeiragem. Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.


FALCÃO, José Luiz Cirqueira. O jogo da capoeira em jogo. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 27, n. 2, p. 59–74, jan. 2006.


FERRACINI, Rosemberg; MAIA, Carlos Eduardo S. O espetáculo na praça: a roda de capoeira angola. Espaço e Cultura, UERJ, RJ, n° 22, p.32–42, jan./dez. de 2007.


GOULART, Lucas Machado. Discípulo que aprende, mestre que dá lição. Uberlândia: Assis editora, 2019.


LOPES, Regiane L. Associação Cultural Corrente Libertadora: capoeira e atuação político-cultural em Tempos de Ditadura (1976–1989). X Encontro Regional Nordeste de História Oral, Salvador/BA, 2015.


MACEDO, Ana Paula Rezende. A Capoeira Angola: História, persistências e transformações. História e Perspectivas, Uberlândia (34): 425–461, jan.jun.2006.


RODA DE CAPOEIRA. O Legado de Mestre Mendonça para a Capoeira. Disponível em: http://www.rodadecapoeira.com.br/artigo/O-Legado-de-Mestre-Mendonca-para-a-Capoeira/


SOUSA, André Sarmento de. Capoeira, das senzalas à universidade: a prática educativa da cultura negra na UFPB. II CONEDU Congresso Nacional da Educação.

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